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A Espiritualidade Quaresmal na Mensagem e Aparição de Nossa Senhora em La Salette

A espiritualidade quaresmal possui um caráter Cristocêntrico-pascal-batismal, e sua essência é um caminho de fé e conversão para Cristo. A conversão quaresmal não se restringe apenas ao aspecto moral, mas é uma conversão para Deus, pois o ser humano viverá de toda palavra que procede da boca de Deus e a Ele somente prestará culto (cf. Mt 4, 1-11). As escolhas de Cristo são sempre voltadas para Deus, pois ao contrário do pensamento humano, Ele pensa como Deus e não como os homens (cf. Mt 16, 21-23). A conversão vai muito além das atitudes morais e consiste em ter um coração semelhante ao de Jesus, permitindo-se ser conduzido pela bondade do coração de Deus.

A conversão é um processo cotidiano. No Batismo, fomos revestidos de Cristo, recebemos o Espírito Santo, renunciando à nossa própria vida em favor de Cristo e do Evangelho (cf. Mc 8, 35). Nossa vida, desde o Batismo, deve estar sempre voltada para Deus, guiada pelo Espírito que habita em nós. Por isso, devemos buscar as coisas do alto, pois nossa vida está em Cristo (cf. Cl 3, 1-3). Essa conversão é um processo contínuo que requer dos cristãos muita oração e uma vida de intimidade com Deus.

Assim, todos os que foram batizados e receberam o Espírito Santo devem viver de acordo com esse Espírito, pois todos os frutos do Espírito são para a edificação do ser humano. É necessário que estejamos atentos a tudo o que é contrário aos frutos do Espírito, tudo o que não gera vida e nos conduz à escravidão e à morte, pois fomos revestidos de Cristo para vivermos uma vida de liberdade, realizando a vontade de Deus em Jesus. Fomos criados para Deus, pertencemos a Cristo, e Cristo pertence a Deus; tudo podemos n’Ele. Não é possível viver uma vida fora d’Ele.

A espiritualidade quaresmal proporciona aos cristãos tudo o que eles precisam para converter-se, sendo um tempo favorável e uma escola de purificação, pois vivemos as palavras de Jesus, proferidas no início da Quaresma: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (cf. Mc 1, 15). Ela introduz os cristãos nos ensinamentos de Jesus e nos prepara para a participação sacramental em seu ministério pascal.

As práticas de penitência quaresmal estão intrinsicamente ou até mesmo explicitamente relacionadas à Aparição de Maria em Salette. Desde o local, posições e palavras de Maria, somos conduzidos ao tempo favorável da conversão, que também é enfatizado em sua mensagem. Por isso, irei explorar de forma didática, em pequenos tópicos, essa relação entre as obras de penitência e a Aparição.

Jejum

O jejum possui uma característica de conversão interior e de recuperação da dignidade, isto é, da reconciliação consigo mesmo e com um coração humilde. Na Aparição, Maria aparece primeiramente sentada, curvada e chorando, lembrando-nos da necessidade de olhar para dentro de nós mesmos, como um convite à interiorização e à busca pela reconciliação interior.

Em suas palavras, Nossa Senhora deixa claro: “Durante a Quaresma, vão ao açougue como cães”, uma expressão dura que também encontramos em Jesus em seu encontro com a mulher Sirofenícia (cf. Mt 15, 26), referindo-se aos pagãos como cães. Maria, ao retomar essa expressão em Salette, quer nos alertar que o comportamento do povo durante a Quaresma é pagão. Pois a Quaresma remete ao tempo que Jesus passou no deserto, conduzido pelo Espírito Santo, enfrentando as tentações da fome. Salette nos lembra da importância desse tempo de deserto e da necessidade de não cairmos em tentação, vivendo à imagem de Jesus.

Portanto, essa reconciliação consigo mesmo, observada no jejum, é de extrema importância. Como Anselm Grun afirma, as pessoas que foram feridas e não reconhecem suas feridas estão condenadas a ferir permanentemente os outros. Pois as feridas não curadas nos obrigam a repassá-las adiante. Somos chamados a reconhecer nossas fraquezas e nos reconciliar.

Caridade

A caridade é a condição primária para demonstrar amor a Deus. Somos convidados a sair de nós mesmos para encontrar a realidade do outro, olhar nos olhos e estar próximos. Em La Salette, Maria se levanta e conversa com as crianças, olhando-as nos olhos, o que nos lembra da reconciliação com nossos irmãos, uma dinâmica quaresmal que nos convida a perdoar os outros. Pois não podemos amar a Deus se tivermos inimizade com nossos irmãos.

Jesus, no Evangelho de Mateus, nos ensina: “se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão” (Mt 5, 23-24), indicando que nós, como cristãos, devemos dar o primeiro passo, mesmo que não tenhamos sido nós os ofensores. Pois a paz começa dentro de nós mesmos, e a vida no Espírito nos convida a dar frutos promotores da paz, seguindo a lógica da justiça de Deus, que ama em primeiro lugar e toma a iniciativa.

As palavras de Nossa Senhora, “Vinde, meus filhos, não tenhais medo, aqui estou para vos contar uma grande novidade”, são acolhedoras e pacificadoras, demonstrando sensibilidade para com as crianças. Outro ponto importante que remete à caridade é a preocupação de Maria em alertar o povo para voltar-se para Deus, ou seja, a penitência da caridade nos faz amar nossos irmãos e ser sensíveis às dores alheias. Os cristãos precisam ser uma presença amorosa e pacificadora na vida da Igreja e no mundo.

Oração

A penitência da oração é o lugar perfeito para escutar Deus e assim seguir os seus ensinamentos. A Aparição de Maria em La Salette acontece na montanha, a mais de 1.800 metros de altitude, o que faz recordar o silêncio e a serenidade do local propício para a oração. Nas Sagradas Escrituras, a montanha é o lugar do encontro com Deus, como vemos com Moisés no Monte Horeb (cf. Ex 19, 24) e Jesus, que frequentemente se retirava para orar na montanha, inclusive quando os discípulos lhe pediram para ensinar a rezar (cf. Lc 11, 1).

A montanha é o local onde podemos perceber a beleza de Deus, e Maria manifesta a glória de Jesus, mesmo na Cruz, mostrando que Ele é o Filho amado de Deus, e que devemos seguir seus passos, encontrando-nos com Ele diariamente “na montanha”, para que sua glória se manifeste na planície de nossas ações.

Além disso, Maria nos questiona na aparição: “Fazei bem as vossas orações, meus filhos?”, enfatizando a importância de rezar ao menos um Pai Nosso e uma Ave Maria, ensinando-nos nessa escola de purificação a oração como um encontro com Deus. Ela também destaca o valor da Santa Missa, observando que, durante o verão, apenas algumas mulheres de certa idade vão à Missa, enquanto outros trabalham no domingo durante todo o verão. Durante o inverno, quando não sabem o que fazer, só vão à Missa para zombar da religião. A Missa já era motivo de chacota e frequentada principalmente por mulheres, enquanto os homens não davam valor à celebração eucarística.

A espiritualidade da Quaresma, em preparação para a Páscoa do Senhor e para viver os mistérios de Cristo, incluindo a penitência da oração, nos convida a nos abrir ao novo de Deus, a caminhar conforme o Espírito de Deus e a nos converter a Ele, o princípio e autor da vida. Pois a vida dos batizados requer essas práticas de oração, pois sem elas, nossa fé seria vã.

Ao final da aparição, Maria volta seu olhar para o céu, lembrando-nos da necessidade de nos reconciliarmos com Deus, vivenciando sacramentalmente o tempo quaresmal e procurando o sacramento da confissão para reconciliação com Deus. Isso só é possível depois de passarmos por todo esse processo de penitência e preparação, para assim ressuscitarmos com Cristo em sua Páscoa. A reconciliação é uma marca extremamente importante da Quaresma e da mensagem de Nossa Senhora de La Salette.

 
Irmão Victor Silva dos Santos, MS