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“Completou-se o tempo e o reinado divino está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova” (Mc 1, 15).
Esta primeira palavra pública de Jesus no evangelho de Marcos é como um resumo de todo o evangelho: anúncio do projeto divino para o mundo. O evangelho é boa nova da vinda do reino ao mundo. E esta boa nova é tão transformadora que exige e suscita nas pessoas que a aceitam uma radical mudança de vida. Esta mudança (no grego, metanoia) implica em transformação da mente e da sensibilidade. Paulo escreveu: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus…” (Cf. Rm 12, 2). Na oração que Jesus ensinou aos discípulos, diariamente oramos: “Seja feita a vossa vontade. Venha a nós o vosso reino”.
Na “Carta ao povo de Deus”, documento assinado por 152 bispos brasileiros e publicado em agosto de 2020, os bispos afirmam:
“Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta”.
(…) “Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor”.
(Cf. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/601313).
Esta centralidade do reino de Deus como meta do evangelho, da fé cristã e da conversão que nos é pedida faz parte de uma nova consciência da missão da Igreja, trazida pelo Concílio Vaticano II (principalmente na Lumen Gentium). Para nós da América Latina, esta nova visão de missão foi concretizada na 2ª Conferência Geral do episcopado latino-americano em Medellín, (1968), como “compromisso de ser uma Igreja a serviço da libertação de toda humanidade e de cada pessoa humana em todas as suas dimensões de vida”(Medellín 5, 15).
É preciso tirarmos algumas conclusões disso para a Congregação de Nossa Senhora da Salette e especificamente para este capítulo provincial.
1 – Como viver hoje o nosso carisma e a nossa espiritualidade
Há religiosos e religiosas que rejeitam as leituras fundamentalistas da Bíblia e fazem cursos para reler os evangelhos a partir do contexto histórico e literário. No entanto, agem com o carisma e os documentos históricos da Congregação como se fossem mais importantes do que a própria Bíblia. Aceitam fazer leitura contextual do evangelho, mas são fundamentalistas quanto às fontes da Congregação. Como escreveu Paulo: “a letra mata. É o Espírito que faz viver” (2 Co 3, 6).
A história da Salette e da aparição da Virgem chorando a Maximino e Melânia tem de ser acolhida e compreendida no contexto da Igreja do século XIX na França. A singeleza do relato nos comove até hoje, mas a sua mensagem de arrependimento e reconciliação com Deus precisam ser transpostos para a Igreja Católica no Brasil dos nossos dias.
Ninguém de nós sustentaria mais que Deus seria capaz de castigar o mundo com a fome e a miséria, porque as pessoas não vão à missa no domingo ou porque rezam menos. Seria como afirmar que Deus provocou agora a pandemia da Covid 19 porque o mundo não depende mais da Igreja Católica. A menos de 100 km de Salette, já nos anos 1980, frère Roger Schutz, fundador e primeiro prior da Comunidade de Taizé repetia sem cessar (e é título de um de seus livros): Deus só pode amar.
A Virgem que está cansada de segurar a mão implacável do Filho para que ela não caia esmagadora sobre a humanidade não é compatível com toda a revelação bíblica de um Deus que é Amor e que enviou o seu Filho ao mundo “não para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 16). A revelação de Jesus é a de Deus como Abba (paizinho) que “faz nascer o seu sol sobre os bons e sobre os maus e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5, 45).
O evangelho de Lucas começa o anúncio de João Batista no deserto pregando arrependimento e reconciliação situando-o no tempo e no espaço: “No 15º ano do reinado de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes, tetrarca da Galileia…” (Lc 3, 1). Hoje, a mensagem da Salette precisa ser bem focada para nós: “No segundo ano em que Bolsonaro era presidente, sendo Dória, governador de São Paulo e Ratinho, governador do Paraná…”. É nessa realidade histórica que podemos e devemos acolher “o que o Espírito diz, hoje, às Igrejas e às congregações” (Ap 2, 5). E aí sim o tema “Reconciliar é a nossa missão” assume uma atualidade urgente. Em uma perspectiva de Igreja-Cristandade, insistia-se nos sacramentos acreditando que estes são ex opere operato, isso é, tem sua eficácia pelo próprio fato de serem realizados. Por isso, a Igreja fazia os sinais da salvação (os sacramentos) de forma desligada do trabalho para que o mundo seja efetivamente salvo, não apenas no sentido de convertido para o Cristianismo e sim no sentido do reino da justiça eco-social e da paz, na qual o papa Francisco está insistindo e os nossos bispos pedem na Carta ao povo de Deus. É preciso situar a reconciliação no sentido da mística do reino. O capítulo vai se reunir poucos dias depois que o papa Francisco publicou a sua encíclica Tutti fratelli: Todos e todas somos irmãos e irmãs. É a ecumenicidade desta humanidade nova, fundamentada em irmandade entre nós humanos e na comunidade da vida, com todos os seres vivos. Essa é a nossa missão como reconciliadores dos pecadores.
2 – Como viver isso hoje
Desde 2013, o papa Francisco insiste em que vivamos uma Igreja “em saída” (Cf. Evangelii Gaudium, 23 e 24). Muitos usam esta expressão mas sem compreendê-la de forma profunda. Assim, a Igreja em saída se torna Igreja em passeio. Para que a Igreja possa realmente ser em saída, a nossa vida religiosa tem de ser toda repensada de forma descentrada. Até aqui nossas congregações eram e ainda são organizadas como que autocentradas. A própria manutenção da congregação, o cuidado com as estruturas, as questões econômicas, as relações internas, tudo isso constitui um conjunto que é importante manter, mas devemos encontrar outro estilo mais leve e em função da missão que não pode ser mais a mesma de uma Igreja em regime de Cristandade (voltada para si mesmo ou que confunda o reino com a Igreja e a espiritualidade com as práticas de piedade).
Atualmente, vivemos em um Brasil e em um mundo cada vez mais inóspito e armado contra a multidão dos pobres e dos diferentes (índios, negros, sem-terra, assim como as minorias sexuais e outras minorias). Todos se espantam quando percebem que nunca a nossa sociedade foi tão polarizada e tão incapaz de dialogar com as diferenças. A impressão que dá é que a maioria dos religiosos e religiosas, distraídos em cumprir suas tarefas religiosas nem se dão conta de que os mesmos fregueses ou clientes da paróquia não conseguem dialogar sobre quase nada e principalmente se se tratar de temas sociais e políticos. Ou nos comprometemos com o trabalho de reconciliação neste nível e nos inserimos no mundo com esta missão ou é ridículo ficarmos falando de reconciliação de um jeito alienado e mesquinho. O evangelho é muito claro. Quando o jovem rico pergunta a Jesus pelos mandamentos que deve praticar, Jesus cita e só os que dizem respeito ao próximo. Quando no discurso sobre a comunidade fala do pecado é “se teu irmão pecar contra ti” (Mt 18, 15). Para ser pecado contra Deus, todo pecado é contra o irmão. E se trata da irmandade de todo ser humano.
Alguém da área de Direitos Humanos a quem eu perguntei “qual a congregação que tem como carisma a reconciliação” me respondeu: O pessoal que organiza fóruns sociais mundiais, que tenta fortalecer as frentes populares que unem partidos e forças sociais comprometidas com a transformação do mundo. Ele nem tinha percebido que eu havia sobre perguntado sobre congregação religiosa e não sobre comissões da sociedade civil. Mas, por que mantemos esta separação? Será isso que Jesus quer? No evangelho, ele propôs aos religiosos de sua época a parábola dos dois filhos (Mt 21, 28- 32). O pai dá aos dois filhos a mesma ordem: vá trabalhar na minha vinha. Qual é a vinha de Deus? A Igreja? A congregação? Estas são instrumentos preciosos e sacramentos amados da vinha. Mas, não são a vinha. A vinha no primeiro testamento era o povo de Israel (Is 5). Não é o templo, nem a religião judaica. É o povo. Vejam isso no salmo 80. Para Jesus é assim. Infelizmente muitas religiões ainda continuam com as duas cidades de Santo Agostinho: a cidade de Deus (a Igreja ou a Congregação) e a cidade dos homens (o mundo profano). A reconciliação é nossa missão é a consciência de que nossa missão é a reconciliação da humanidade. É assim que na 2ª carta aos coríntios, Paulo fala da reconciliação a partir da construção de uma humanidade nova, reconciliada: “Se alguém é de Cristo é nova criação. Tudo (pantà: tudo, o mundo, a sociedade, a natureza, tudo) vem de Deus que por Cristo nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2 Co 5, 18). Esta reconciliação pode ter como sacramento o sacramento da Penitência mas a realidade da reconciliação é o esforço de construir um mundo de justiça, de paz e de sustentabilidade. O papa fez a Ecologia integral constar da missão e assim apareceu no próprio tema do Sínodo da Amazônia.
3 – Para concluir esta meditação:
Na Índia, o Mahatma Gandhi afirmava: “Comece por você mesmo a mudança que propõe para o mundo”. É a própria Congregação em si mesma que é a missão de reconciliação. A reconciliação deve se manifestar no próprio fato de estarmos juntos e neste caminho.
Na Idade Média, Sto Estêvão de Muret dizia: “Todo cristão e cristã é consagrado/a pelo batismo. A/o religiosa/o é toda pessoa que busca a unidade interior. A Regra e as Constituições de cada congregação existem para nos ajudar a concretizar este caminho” .²
No século XX, o teólogo Raimond Panikkar nos ajudou a redescobrir esta dimensão de consagração, presente em todo ser humano que busca a unificação interior e a simplicidade³ . Neste sentido, oblação e profissão religiosa se unem como formas de renovação do batismo e profecia na Igreja a serviço da paz e da justiça.
Em 1964, o Concílio Vaticano II definiu a Igreja como sendo principalmente cada Igreja local e em comunhão umas com as outras. Então, a Igreja de Roma e o seu bispo seriam uma Igreja primaz e não chefe das outras. Nossa congregação é organizada por comunidades. Como vamos viver radicalmente a vocação da sinodalidade que o papa propõe a toda Igreja como forma da Igreja ser e que será o tema do próximo Sínodo dos Bispos?
Viver em comunidade é nossa vocação. Para cada pessoa que pertence ao nosso grupo, a comunidade é instrumento de conversão e sacramento da presença divina. Ela exige de nós uma permanente saída de nós mesmos e uma conversão que queremos viver como expressão do nosso compromisso de consagração.
Compreendemos que a vida em comunidade continua sendo uma parábola do Evangelho para o mundo atual. A nossa primeira missão seria vencer em nós mesmos o individualismo dominante no mundo e nos tornamos capazes de ser pessoas verdadeiramente comunitárias.
É preciso que sejamos capazes de viver verdadeiramente entre nós aquilo que propomos ao mundo como ideal da sociedade. É preciso vivermos entre nós o que ensinamos aos grupos e comunidades com os quais trabalhamos no dia a dia. Isso significa que nossa convivência deve ser solidária na qual, ao invés de competir as pessoas colaboram umas com as outras, ao invés de buscar cada um a sua realização meramente individual buscamos a felicidade de todas.
Hoje, compreendemos que a congregação precisa se abrir mais a essas diversas formas de pertença. Irmãos consagrados, irmãos e irmãs que mantenham sua autonomia e a vida na família mas queiram repartir conosco a missão e a convivência na oração e na fraternidade.
É a partir desta realidade que vivemos como congregação a palavra do salmo 40: Eis-me aqui. Envia-me.
² – ST ÉTIENNE DE MURET, Livre de la Doctrine, citado in CONNAISSANCE DES PÈRES DE L’ÉGLISE, n. 19-20, p. 50 (contra-capa).
³ – RAIMON PANIKKAR, L’Éloge du Simple, Paris, Ed. du Cerf, 1989.